Na teoria de Piaget (1983), pode dizer-se que o que se desenvolve com o desenvolvimento cognitivo é uma competência geral e estrutural do sujeito para pensar e raciocinar sobre o mundo físico e logico-matemático, considerados de um ponto de vista científico. O que se modifica com o desenvolvimento cognitivo na teoria de Piaget é o modo geral, estrutural e organizado de pensar e conhecer a realidade, não tanto os conhecimentos específicos e locais que vamos adquirindo sobre ela (Dolle 2005).
As formas de inteligência são, assim sendo, mudanças na estrutura ou no modo global de conhecer e pensar, não tanto a aquisição de conhecimentos específicos.
Piaget impôs a si próprio a meta de entender a construção do conhecimento necessário, ou a compreensão das razões pelas quais a criança chega, em certo momento da sua vida, a perceber que determinados conhecimentos, que adquire, são necessários. Em dado momento do seu desenvolvimento, a criança sabe que, em caso de passagem de uma certa porção de água para um copo mais alto e estreito, a quantidade de água que existe no segundo copo não é só a mesma, conhecimento verdadeiro, como não pode ser senão a mesma, conhecimento necessário (Dolle 2005).
Bebés, crianças, adolescentes e adultos, capazes de uma inteligência diferente, funcionam do mesmo modo: assimilando a realidade e acomodando-se a ela.
O período da inteligência sensório-motora termina por um estádio que efetua a transição entre a inteligência propriamente sensório-motora, sem linguagem, sem representação, sem conceitos, etc. e a inteligência representativa. Esta transição da inteligência propriamente sensório-motora à inteligência representativa não se efetua por uma mudança repentina, mas através de transformações lentas e sucessivas que é possível seguir.
Duas etapas representam esta reelaboração representativa. Na primeira etapa, crianças dos 2 aos 7 anos, domina a representação simbólica. A criança vê mentalmente aquilo que evoca.
A inteligência operatória concreta consiste em classificar, seriar e enumerar os objetos e suas propriedades no contexto de uma relação do sujeito com o objeto concreto. (Lourenço 2010).
Para Piaget, “o pensamento representativo, ao contrário da atividade sensoriomotora, começa a partir do momento em que, no sistema das significações que constitui toda a inteligência e, sem dúvida, toda a consciência, o significante se diferencia do significado”.
A partir do momento em que a inteligência se torna representativa, opera-se uma distinção no seio das significações estabelecidas pela inteligência sensoriomotora. Cada objeto é representado em imagem. A cada objeto corresponde, progressivamente, uma imagem (mental) que permite à criança evocar este objeto na ausência deste.
O pensamento da criança entre os 2 e os 7 anos é dominado pela representação figurada de caracter simbólico. A criança trata as imagens como verdadeiros substitutos do objeto e pensa efetuando relações entre imagens. O seu pensamento é intuitivo e pode ser considerado como uma verdadeira transposição do plano sensoriomotor para o plano da representação figurada.
Por volta dos 7 anos, a criança adquire a reversibilidade lógica que confere uma mobilidade muito maior ao seu pensamento. A atividade cognitiva da criança torna-se operatória a partir do momento em que adquire uma mobilidade tal que uma ação efetiva do sujeito (classificar, adicionar, etc.) ou uma transformação apreendida no mundo físico (e.g. volume de líquidos, etc.) pode ser anulada em pensamento por uma ação orientada em sentido inverso. (Lourenço 2010).
O período pré-operatório é considerado um período de preparação, sendo ao mesmo tempo um período de desenvolvimento das estruturas já adquiridas, as do nível sensoriomotor.
No estádio pré-operatório, a modificação principal no desenvolvimento da inteligência deve-se ao aparecimento das funções simbólicas (Piaget, 1962a).
Por volta de um ano e meio aos dois anos produzem-se uma série de transformações na criança tais como: o surgimento da linguagem, a realização de jogos simbólicos, da imitação diferida e da criação da imagem mental (Piaget, 1962a).
O começo da representação é o ponto de partida de novas estruturas que ultrapassam as do nível sensório-motor (Piaget, 1962a).
A função simbólica pode ser caracteriza por uma diferenciação entre significante e significado (Piaget, 1962a).
Esta função simbólica provoca então grande flexibilidade no campo da inteligência. Até então, a inteligência refere-se ao espaço imediato que rodeia a criança (…); graças à linguagem e às funções simbólicas torna-se possível invocar objetos que não estão presentes mas muito mais distantes no espaço, em suma abranger distâncias espácio- temporais muito maiores que anteriormente (Piaget, 1962-a, pp. 59).
Na criança as quatro formas de função simbólica surgem ao mesmo tempo: a linguagem, adquirida por imitação; o jogo simbólico (no qual existem três categorias de jogos: o jogo de exercício, o jogo simbólico, e o jogo de regras de comportamento social); a imitação diferida, ou seja, a imitação de um modelo na ausência desse modelo; e a imagem mental inexistente ao nível do sensório-motor. Estas diferentes formas estão em relação estreita com a imitação. A linguagem adquire-se pela imitação; a imagem mental pode ser concebida como uma imitação interiorizada (Piaget, 1962a).
A imitação forma pois, o processo de transição entre o nível sensório-motor e a representação. Há uma imitação sensório-motora, que é uma representação no ato. Quando esta imitação se interioriza existe diferenciação entre o significante e o significado sendo o começo da função simbólica (Piaget, 1962a).
No pré-operatório, a criança não tem ainda o conhecimento de conservação (Piaget, 1962a).
No estádio das operações concretas a criança opera sobre os objetos concretos, as operações trabalham com classes, relações lógicas e com o número, mas ainda não trabalham com proposições ou hipóteses que só vão surgir no último estádio (Piaget, 1962a).
O último estádio de desenvolvimento da inteligência é o estádio das operações formais (Piaget, 1962a). Segundo o mesmo Piaget (1990) “com as estruturas operatórias “formais” que começam a constituir-se por volta dos 11-12 anos, chegamos à terceira grande etapa do processo (…)” (p.45).
Para Piaget (1990) “é esse poder de formar operações sobre operações que permite ao conhecimento ultrapassar o real e que lhe abre o caminho indefinido dos possíveis por meio da combinatória, libertando-se das construções graduais a que continuam submetidas as operações concretas” (p. 46).
Neste trabalho, procuramos verificar e estudar um pouco mais as capacidades das crianças que estejam no estádio de desenvolvimento que Piaget (1962b) designou de pré-operatório e operatório concreto, utilizando para tal estudo a realização de duas provas piagetianas, a seriação e a classificação.
O estádio da inteligência simbólica ou pré -operatória (dos 2 aos 6/7 anos) realiza a transição da inteligência sensório-motora, isto é, sem linguagem, sem representação e sem conceitos para uma inteligência representativa. Este processo ocorre progressivamente. Apesar da sensório-motricidade prevalecer, a imagem mental manifesta-se nas ações propriamente ditas, na procura do objecto depois dos deslocamentos invisíveis e na criação de novas soluções para alcançar um fim através da combinação mental (Dolle, 2005).
A passagem da inteligência sensório-motora à inteligência representativa faz- se através da imitação que serve de base à função simbólica (Dolle, 2005).
A imitação diferida conduz à transição da inteligência sensório-motora à inteligência representativa. O significante e o significado, estão dissociados e o pensamento representativo produz-se e desta forma a criança pode alcançar a linguagem e o pensamento. A criança representa o mundo através de imagens, no entanto a linguagem e a imagem são dissemelhantes. Enquanto na linguagem no sistema de signos convencional o significante e o significado são distintos, a imagem é uma cópia do real. A recordação-imagem/cópia é utilizada pela criança para se referir a situações, pessoas e objetos sem que estes estejam presentes. A aquisição da linguagem e a construção do sistema de imagens ocorre entre os 2 e os 5 anos. A linguagem é particular e cada palavra não representa um conceito, mas sim uma determinada realidade e o seu correspondente figurado. A construção do mundo numa esfera representativa é feita a partir da própria criança pelo que nesta fase o egocentrismo intelectual se encontra no seu expoente máximo (Dolle, 2005).
Entre os 5 e os 7 anos, a criança passa por um período designado “intuitivo”, a intuição é uma ação que se realiza em pensamento e tem como objetivo: fazer corresponder, seriar e encaixar, e é um pensamento figurado, com a diferença de que a configurações são representativas de conjuntos maiores (Dolle, 2005).
Aos 7 anos a criança adquire a reversibilidade lógica, deste modo o seu pensamento tem uma maior flexibilidade, o que por sua vez conduz à descentração da criança. A atividade cognitiva torna-se operatória quando adquire mobilidade, e é reversível, deste modo, uma ação do sujeito ou a apreensão de uma transformação pode anular-se por uma ação em sentido oposto ou por uma ação recíproca. O pensamento operatório processa-se devido às invariantes. Segundo Dolle (2005) “uma transformação operatória permanece sempre relativa a um invariante que constitui um esquema de conservação” (p.198). Desta forma podemos compreender que as conservações não são inatas, são adquiridas (Dolle, 2005).
No estádio da inteligência operatória concreta ou das operações concretas (6/7 a 11/12 anos), desenvolvem-se esquemas de conservação ou noções de conservação, ao mesmo tempo que se constroem as estruturas lógico-aritméticas de classes, de relações e de número por meio das atividades do sujeito. Estas não se desenvolvem simultaneamente, têm desfasamentos. As operações concretas são referentes ao real concreto daí que os desfasamentos surjam na dependência do real e da incapacidade de libertação das configurações percetivas (Dolle, 2005).
Nas operações concretas podemos considerar que as operações mais simples são as classificações de objetos tendo em conta as semelhanças e as diferenças (Piaget, 1962a). Posteriormente por volta dos 7/8 anos, as crianças adquirem a capacidade de classificar através dum processo de inclusão, de acordo com Piaget (1962a) “consegue-se isto incluindo as subclasses dentro de classes maiores e mais gerais” (p. 61).
Numa das experiências existentes de classificação, a criança tem que classificar formas geométricas com tamanhos diferentes de acordo com a instrução, «juntar o que é igual». O que se verifica é que a criança faz: Pequenos alinhamentos parciais, dispõe primeiro os retângulos, depois os triângulos seguidos dos círculos, de acordo com um critério de semelhança mas sem um plano definido; Alinhamentos contínuos, os elementos são dispostos pela cor, isto é, um quadrado verde, depois um triângulo verde, seguidamente o critério muda e organiza os objetos pela forma; Intermédios (entre os alinhamentos e os objetos coletivos ou complexos); Objetos coletivos, a criança junta várias formas, por exemplo, um quadrado e um triângulo para construir uma casa; Objetos complexos de formas geométricas ou empíricas, a criança junta várias as formas geométricas por exemplo dois retângulos com um quadrado de um lado e um circulo do outro (Dolle, 2005).
A seriação faz uma avaliação de acordo com a ordenação partindo de uma análise de diferenças entre objetos e a classificação fá-la de acordo com o agrupamento de objetos segundo as semelhanças verificadas nos mesmos (Piaget, 1990). As provas consistem na apresentação de materiais que permitem este tipo de operações à criança através das quais se podem analisar a estrutura cognitiva da criança, que irá por sua vez revelar o nível operatório (dos quatro estádios definidos por Piaget) do sujeito e a relação do mesmo com a idade da criança (Piaget, 1990). Os resultados das atividades a partir duma análise das respostas obtidas podem-se agrupar em 3 níveis. No nível 1 não existe qualquer noção daquela que é avaliada pela prova; no nível 2, já existe alguma noção relativamente à operação apresentada, mas ainda existe alguma instabilidade; e por último no nível 3, é revelado que já foi feita a aquisição do nível operatório do domínio que se procura testar (Piaget, 1990).
De acordo com Piaget (1962b), a seriação constitui uma estrutura de relações assimétricas e transitivas. O problema consiste em ordenar os elementos segundo uma qualidade crescente (a grandeza, por exemplo, ou o peso). Na experiência de Piaget e Szeminska (s.d., cit. in 1962b) que evidência as operações de seriação, o material utilizado é composto por 10 réguas entre 9 cm e 16,2 cm. Essas réguas estão sobre a mesa e não são distintas senão quando comparadas duas a duas. É pedido à criança para construir uma escala pondo o elemento mais pequeno à esquerda. Nessas experiências distinguem-se três estádios: o primeiro estádio entre os 4 e os 5 anos, os sujeitos agarram ao acaso dois elementos, comparam-nos e põem-nos sobre a mesa. Depois agarram outros dois elementos e colocam-nos sobre a mesa depois de os terem comparado. A criança, não chega a corrigir os elementos (Piaget, 1962b). No segundo estádio, a criança vai colocando os elementos à sorte, havendo depois uma correção a cada passo. Tentativas sucessivas levam aos resultados corretos, não existindo um método lógico, mas sim por ensaios e erros (Piaget, 1962b). No terceiro estádio, por volta dos sete anos, a criança agarra a régua mais pequena que vê, assegura-se de que não existe outra mais pequena e põe de parte, depois procura a mais pequena das que restam e coloca-a ao pé da outra e assim sucessivamente. Esta conduta realiza uma dupla relação: um elemento qualquer é maior que os procedentes e é mais pequeno que todos os elementos restantes. Assim existe de facto um método operatório, uma vez que existe a combinação de dois elementos inversos e para além disso o problema da reversão está resolvido (Piaget, 1962b).
No entanto, cada criança tem o seu próprio ritmo de desenvolvimento cognitivo e faz as suas evoluções individualmente, e duas crianças que estejam diariamente lado a lado, de forma constante, como por exemplo no caso de irmãos, podem revelar ritmos de desenvolvimento cognitivo totalmente diferentes.
Na conservação das quantidades contínuas (prova da conservação dos líquidos), o experimentador apresenta à criança dois copos, um mais alto e estreito e outro mais baixo e largo do que o inicial, passa o líquido do primeiro para o segundo copo e pergunta se “há mais, menos, ou a mesma coisa de água do que no outro copo, e porquê”. A criança pré-operatória tende a dizer que “há mais água no copo mais alto e estreito, porque chega mais alto ou fica mais acima”. A criança centra-se apenas na altura do copo e esquece a sua largura, não compreende que o líquido aumenta em altura tanto quanto diminui em largura.
Na conservação das quantidades numéricas, numa primeira fase (4/5 anos), a criança dispõe de moedas em fila e realiza uma correspondência linear entre as duas filas mas não de forma quantitativa. Faz uma fila que tem aproximadamente o mesmo comprimento do modelo, mas de densidade diferente e portanto de valor cardinal diverso. Contentam-se com uma avaliação global baseada na correspondência figural e não na correspondência cardinal. Julgam a quantidade pelo espaço ocupado. Dá-se o nome de intuição simples ao facto de a criança só dar importância ao tamanho da fila e intuição articulada quando a criança faz correspondência termo a termo.
As operações concretas surgem entre os 6/7 anos e os 10/11 anos, fases que coincidem com o facto de a criança se começar a relacionar com o mundo, não apenas por ações sensoriais e motoras, mas também com ações mentais, executadas de forma unidireccional ou irreversível. Quando a criança por volta dos 6/7 anos adquire a reversibilidade lógica, ou seja, o que confere uma mobilidade muito maior ao seu pensamento, permitindo-lhe uma descentração em que a criança é capaz de resolver problemas, tendo vários pontos de vista e dimensões.
Referências:
Flavell, J. (1975). A psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget. Brasil: Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais (Obra original publicada em 1965).
Piaget, J. (1962a). Estádios do desenvolvimento intelectual da criança. In A. Slater & D. Muir (Eds.), Psicologia do Desenvolvimento (2004) (pp. 120-128). Lisboa: Instituto Piaget.
Lourenço, O. (2010). Psicologia de Desenvolvimento Cognitivo: Teoria, Dados e Implicações (2a ed.). Coimbra: Edições Almedina, SA.
Dolle, J.–M. (2005). Para Compreender Jean Piaget. Lisboa: Instituto Piaget, Col. Horizontes Pedagógicos.