Antes de adentrarmos na discussão sobre os prejuízos que a dependência do álcool causa nas relações de trabalho faz-se necessária a definição da doença, que segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) é classificada como patologia crônica, sendo o principal transtorno mental que atinge a população em escala mundial.
O Código Internacional de Doenças (CID-10), da OMS, descreve a Síndrome de Dependência do Álcool (F 10.1) como:
“um conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos que se desenvolvem após repetido consumo de uma substância psicoativa, tipicamente associado ao desejo poderoso de tomar a droga, à dificuldade de controlar o consumo, à utilização persistente apesar das suas consequências nefastas, a uma maior prioridade dada ao uso da droga em detrimento de outras atividades e obrigações, a um aumento da tolerância pela droga e por vezes, a um estado de abstinência física.”
A multicausalidade para o desenvolvimento da dependência do álcool compreende, por exemplo, a hereditariedade, a personalidade, traumas psicológicos, fatores socioculturais e ambientais, sendo o meio ambiente do trabalho um dos protagonistas no desenvolvimento da mazela.
Quando o diagnóstico possui como responsáveis agentes etimológicos ou fatores de risco de natureza ocupacional, a OMS subdivide a síndrome alcóolica em dois grupos: (i) Problemas relacionados com o emprego e com o desemprego: Condições difíceis de trabalho (Z56.5); e (ii) Circunstância relativa às condições de trabalho (Y96).
Com efeito, o Ministério da Saúde brasileiro adotou uma lista de doenças relacionadas com o trabalho, elaborada em cumprimento da Lei n. 8.080/1990, inciso VII, § 3º do art. 6º — disposta segundo a taxonomia, nomenclatura e codificação da CID-10, por meio da Portaria n. 1.339 de 18 de novembro de 1999 , e que vai ao encontro com a orientação da OMS quanto ao tema alcoolismo.
No Brasil, a partir da década de 1980 com maior desenvolvimento da economia e modernização dos meios de produção, o consumo de álcool no contexto laboral alcançou maior relevância.
Estudos elaborados a partir desse período apontam que o alcoolismo está diretamente vinculado àquelas profissões em que o obreiro habitualmente é submetido à fadiga, ao estresse e ao risco intrínsecos à ocupação, além daquelas atividades socialmente desprestigiadas, em que a possibilidade de ascensão profissional é restrita.
Relatório Global sobre álcool e saúde elaborado e divulgado pela OMS aponta que: Um dos principais fatores sociais de vulnerabilidade associado ao consumo de álcool é o desenvolvimento econômico.
Na contemporaneidade os índices de alcoolismo são superados a cada ano na medida em que é constatado aumento na insatisfação profissional devido às condições precárias de trabalho, jornadas extenuantes, falta de reconhecimento, valorização e oportunidades de ascensão, o excesso de cobranças pelo atingimento de metas e superação de resultados, o assédio moral e sexual cada vez mais recorrentes nas corporações, e o sentimento de frustração por aqueles que almejam a projeção acelerada da carreira e não alcançam o objetivo no tempo esperado.
Nesse cenário, a ingestão de bebidas alcóolicas ocorreria na tentativa de anestesiar o sofrimento psíquico e aliviar as tensões do cotidiano, como uma estratégia de defesa do trabalhador abalado.
Entre as profissões que evidenciam maior favorecimento para o vício, dentre as diversas ocupações, podemos citar: motoristas e cobradores de transporte coletivo urbano, motoristas de carga, trabalhadores da construção civil, e policiais militares.
Uma parcela relevante dos profissionais que atuam nessas áreas vivencia frequentemente a violência urbana, prática constante de jornada extraordinária, longos períodos de congestionamento do trânsito, estigma social, entre outras situações que os tornam mais suscetíveis a desenvolver a síndrome quando comparados aos trabalhadores que se ativam em outras ocupações.
Em que pese as condições ambientais representarem papel importante no desenvolvimento da doença, necessário ressalvar que o cenário inverso, o do desemprego, revela significativo fator desencadeador da síndrome de dependência do álcool.
Esses fatores são determinantes para o desequilíbrio da saúde psíquica, gerando o esvaziamento existencial e evoluindo em depressões graves, que são a porta de entrada para o consumo excessivo de álcool.
O estudo mais recente elaborado no II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD ), dirigido pelo pesquisador Ronaldo Laranjeira e sob a Coordenação da pesquisadora Clarice Sandi Madruga, mapeou o perfil da população brasileira consumidora de álcool entre 2006 e 2012.
O resultado indicou que 91% do público que consome álcool possui mais de 18 anos de idade, sendo a maioria do sexo feminino, com 52%. A maior parcela dos entrevistados, que representa 31,8%, possui ensino médio e técnico (completo e incompleto), seguidos por consumidores que são analfabetos ou completaram no máximo o ensino fundamental, com 28,5%. Em relação à classe econômica, os consumidores da Classe C indicam maior consumo, sendo 45,2% dos envolvidos.
Ainda, informação relevante indica que 8% da população, cerca de 7,4 milhões de brasileiros, admitiram que o uso do álcool já ocasionou prejuízos no trabalho. E cerca de 4,9% dos entrevistados, que representam 4,6 milhões de brasileiros, refere situação de desemprego resultante do consumo de álcool.
CAPÍTULO II
OS REFLEXOS DA SÍNDROME DE DEPENDÊNCIA DO ÁLCOOL NAS RELAÇÕES DE TRABALHO
O álcool é fator considerável quando o assunto é ausência no trabalho, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Não raro, os trabalhadores acometidos pela síndrome de dependência alcóolica tendem a ausentar-se do trabalho com maior frequência que os demais trabalhadores, principalmente às segundas e sextas-feiras. Esse perfil de trabalhadores representa também a parcela prevalente dos atrasos da jornada contratada.
Da mesma forma, o histórico profissional dos trabalhadores vítimas da síndrome evidencia curtos períodos de trabalho e alta variação de empregadores, além de indicar prevalência nos casos de abandono de emprego.
De acordo com a OIT , o alcoolismo ocasiona nítida diminuição no rendimento profissional dos trabalhadores alcóolatras devido a redução da capacidade cognitiva e controle motor. É observada, também, queda na capacidade de discernimento e raciocínio lento, ocasionando menor concentração no exercício das atividades habituais com consequente redução da qualidade do serviço prestado.
A dependência alcóolica atinge todos os cargos e níveis, favorecendo acidentes e afastamentos por doença, podendo causar a morte do trabalhador, inclusive.
O uso do álcool é o fator de destaque nos registros de acidente ocorridos no trabalho, representando aproximadamente 20% dos infortúnios em nível mundial, consonante apuração da OIT .
A Organização aponta, ainda, que o Brasil é o quarto país do mundo no ranking que mapeia os acidentes no trabalho, que ocorrem, em média, a cada 48 segundos. A cada 3horas e 48minutos um acidente no trabalho resulta em morte .
Verifica-se baixa performance, conflitos com os colegas de trabalho e maior dificuldade de relacionamento e interação, podendo impulsionar, o trabalhador doente a cometer pequenos furtos no ambiente de trabalho para a compra de bebidas alcóolicas.
Nesse contexto, é certo que o alcoolismo é um problema amplo e atual no mercado de trabalho, colocando em risco o trabalhador, os colegas de trabalho e a corporação como um todo, podendo, ainda, chegar a atingir o consumidor dos serviços prestados, a depender do ramo de atividade profissional.
Segundo o Médico do Trabalho Vicente Pedro Mariano :
“Nas pequenas empresas, calcula-se que a perda da capacidade de trabalho corresponde a 60 mil dólares e, para as médias e grandes empresas, de 500 mil a um milhão de dólares, sendo que, em virtude do alcoolismo, 50% dos acidentes ocorrem por sua causa. ”
Para o empregador, o custo do empregado alcóolatra vai além dos custos operacionais convencionais. Em havendo necessidade de substituição da mão de obra, devem ser considerados os gastos com recrutamento e treinamento do trabalhador substituto, ou a sobrecarga do quadro profissional ativo para compensar o desfalque do trabalhador doente.
Levantamento organizado pelo Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID) indica que o Brasil perde anualmente cerca de US$19 bilhões em razão do uso de álcool e drogas relacionados ao trabalho .
Em relatório veiculado pelo Ministério da Previdência Social restou demonstrado que a cada três horas uma pessoa é afastada do trabalho e encaminhada para tratamento resultante de dependência química.
Somente em 2008 foram registradas 31.721 licenças por períodos superiores a 15 dias para viciados em álcool, maconha, cocaína e anfetamina. Em 2011 foram 41.534 licenças, o que indica um aumento substancial, indicador sem dúvida já superado .
Entre os Estados da Federação, São Paulo se destacou pelo maior número de pedidos no ano de 2013, com 4.375 auxílios-doença concedidos, seguido de Minas Gerais, com 2.333 requerimentos .
Necessário consignar, todavia, que a apuração é superficial, na medida em uma parcela significativa da população não contribui para o INSS e, por isso, não tem direito a esse benefício.
No ordenamento jurídico brasileiro, a Consolidação das Leis do Trabalho, instituída pela Lei n. º 5.452/1943, dispõe em seu artigo 482 as causas passíveis de justificar a demissão por justa causa de empregado. A alínea “f” é específica em elencar a embriaguez habitual como uma das hipóteses.
No âmbito das normas de proteção ao trabalhador, temos: a Norma Regulamentadora (NR) 7 , que reputa ao empregador a obrigatoriedade de elaborar e implementar o Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional (PCMSO), além da NR 5 , que prevê a criação da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes – CIPA, ambas com o objetivo de promover e proteger a saúde do trabalhador.
Na época em que a lei foi elaborada o alcoolismo não era considerado doença. Com o passar do tempo, sobretudo após ter-se iniciado o mapeamento periódico dos casos, as Instituições competentes em matéria de trabalho têm instituído mecanismos de freio para este tipo de dispensa justificada, a fim de prestigiar a função social do contrato de trabalho.
Para tanto, têm-se valido das Normas Regulamentadoras que dispõe sobre o assunto, e imprimido maior efetividade aos Princípios da Proteção, da Continuidade do emprego, e o da Dignidade da pessoa humana através da jurisprudência recente ventilada nas Cortes Especializadas.
Isso se deve ao fato de que após a classificação da síndrome como doença pela OMS, a embriaguez habitual passou de mera hipótese de validade do desligamento motivado para o status de questão de saúde pública, sendo certo que a legislação não deve ser interpretada de forma restritiva em detrimento do empregado doente.
Em paralelo, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. º 206/03, que pretende revogar a alínea “f” do art. 482, oportunamente citada, para restringir a possibilidade de aplicação da justa causa ao empregado alcoolista, desde que este tenha sido submetido à perícia médica do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e, diagnosticado com a dependência se recuse ao tratamento médico. Atualmente o projeto aguarda análise da Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público.
Mesmo antes da aprovação e sanção da alteração legislativa, é recomendável que as corporações implementem programas que visem à prevenção do consumo de álcool, e promovam canais de ajuda ao trabalhador doente, a fim de incentivar o tratamento. Essas medidas podem atuar de maneira profilática evitando maiores despesas no futuro.
Outra alternativa para resguardar o empregador é encaminhar o trabalhador ao INSS e, eventualmente, para tratamento médico e psicológico, se necessário.
Contudo, por inexistir obrigatoriedade de realização de procedimentos para dependentes químicos, as organizações deixam de incluir os exames toxicológicos na rotina dos programas ocupacionais com receio, inclusive, de sofrer condenações judiciais decorrentes de reclamações trabalhistas que aleguem violação da intimidade e preconceito. À exceção das profissões que exijam tais exames no PCMSO, tais como: motoristas de ônibus e de transportadoras, operadores de máquinas, e operadores de empilhadeiras.
Com efeito, é cediço que o alcoolismo crônico deixou de ser causa válida a motivar a demissão por justa causa, de modo que o empregador que se valer do dispositivo legal para efetivar o desligamento pode enfrentar maiores problemas decorrentes do ato.
Isso porquê, a jurisprudência prevalecente do Tribunal Superior do Trabalho tem considerada discriminatória a dispensa do trabalhador alcoolista, sendo recorrente a ordem de reintegração no posto de trabalho e a condenação do empregador no pagamento de salários oriundos do período de afastamento, além e indenizações por danos morais, pelo fato do alcoolismo ser considerado estigma social que gera mácula à honra e imagem do trabalhador, e como tal deve ser reparada.
Em casos específicos, restando demonstrado o nexo de causalidade entre o alcoolismo e o labor dispendido em favor do empregador, o trabalhador é contemplado com a estabilidade provisória de emprego até que seja reestabelecida a plena higidez, ficando proibido o desligamento no mesmo período.
De outra sorte, em havendo a impossibilidade de reintegração, ao menos a indenização pelo dano moral deve ser garantida ao trabalhador, como ocorreu no caso emblemático do ex degustador de empresa fabricante de bebidas alcóolicas que restou acometido pela síndrome da dependência do álcool.
A 5ª Turma julgadora do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) considerou que a empresa não demonstrou que tivesse oferecido treinamentos ou adotado medidas preventivas para evitar os danos causados ao trabalhador .