O uso de substâncias psicoativas – prática milenar que acompanha as sociedades desde seu surgimento – possui diversos fins; desde o uso lúdico, com vistas apenas a experienciar o prazer, até a busca por estados de êxtase em contextos místicos e religiosos.
Diferentes sociedades desenvolvem distintas relações com tais substâncias. O caso da ayahuasca – bebida de origem amazônica psicoativa composta de duas plantas principalmente utilizada em contextos xamânicos -, ilustra os diferentes papeis que as substâncias psicoativas podem adquirir conforme o contexto no qual se situam. Esta prática, originalmente ameríndia, vem sofrendo certa “internacionalização”, sendo seu uso ampliado inclusive para ambientes urbanos provenientes das classes médias e altas, americanas e européias (LOSONCZY & MESTURINI, 2011).
No entanto, este movimento de internacionalização e maior aceitação de substâncias psicoativas em contextos urbanos não é algo costumeiro. Nas sociedades ocidentais, o uso de drogas é largamente estigmatizado e seu consumo criminalizado em muitos países. A noção de que a droga é um mal que precisa ser combatido de todas as maneiras permanece no imaginário popular e se intensifica dependendo da droga em questão, como é o caso do crack.
Isto fica claro ao analisarmos matérias de jornais e revistas que, ao referir-se aos usuários de crack, é feita uma ênfase na descrição de traços e posturas corporais, de maneira que todos os resquícios de humanidade sejam apagados e os usuários sejam vistos como a personificação da doença. Os aspectos corporais depreciados ganham extrema relevância nestas descrições assim como as posturas sociais e morais que fogem ao que é esperado das normas sociais. Submetidos, portanto, aos “poderes” da droga, “os usuários invertem nossas noções de higiene, asseio corporal, de cuidado com a saúde e com a estética; logo, às nossas noções de sujeira e desmazelo corporal” (RUI 2014, pg 20)
O uso de drogas, portanto, possui implicações públicas e políticas que não podem ser ignoradas quando de sua investigação. Responsável por despertar diferentes e variados efeitos naqueles de alguma maneira envolvidos com seu uso, ele se conecta a rejeição ou a compaixão de uma corporalidade específica que se firma em um tipo social que nos confronta com noções particulares do limite da experiência humana (RUI, 2014).
Neste sentido, não há como separar corpo e substância da construção da pessoa, já que os atos contínuos de consumo acabam por se corporificar. Sem a substância química, este tipo de corpo não é construído; por outro lado, sem o corpo não se constrói essa pessoa. Sem a pessoa, não se constroem as relações que envolvem os usuários, tampouco as territorialidades nas quais o uso é desenvolvido (RUI, 2014).
Este artigo busca debruçar-se sobre o uso de drogas a partir de uma visão não-dual, ou seja, que não se baseie apenas em uma visão naturalista (que propõe uma autonomia natural e material dos corpos) nem em culturalista (aquela que entende os corpos como construção social, resultado de um contexto simbólico que varia histórica e culturalmente).
A partir de um apanhado sobre a bilbiografia que abarca o paradigma da corporeidade (CSORDAS, 2008; DUMONT, 1966; MAUSS, 1980); reconstruindo as noções de objeto/coisa para analisar a droga (INGOLD, 2012); e ainda desafiando a dualidade insustentável entre razão/emoção (SURRALÈS, 2004), partiremos para uma análise daquela que se dedica exclusivamente ao uso de drogas à luz do paradigma em questão. Em seguida, mobilizaremos estes conceitos para analisar um contexto específico: uma casa de acolhimento de adolescentes com uso problemático de drogas no município do Rio de Janeiro.
1.Embodiment e uso de drogas
Nesta seção, o objetivo é apresentar autores que nos ajudem a entender de que forma o conceito de embodiment ou ainda o paradigma da corporeidade nos possibilitam analisar o uso de drogas sob uma perspectiva mais complexa, superando a dicotomia natureza/cultura; corpo/mente.
Ao falarmos do corpo em antropologia é indiscutível o legado de Marcel Mauss, para quem toda a expressão corporal era aprendida, uma afirmação compreensível no contexto de sua preocupação em demonstrar que os domínios físico, psicossocial e social estabeleciam uma relação de dependência entre si. Mauss buscou demonstrar que as técnicas do corpo correspondem a mapeamentos socioculturais do tempo e do espaço. O objetivo era elaborar uma abordagem que possibilitasse lançar um olhar para o homem não como resultado de estados individuais de consciência, tampouco como obra de observação da sociedade, ou seja, um conjunto de hábitos exóticos. Mauss utilizou como argumento a afirmação de que os seres humanos moldam o mundo através do corpo; e, da mesma maneira, o corpo é a substância original com a qual o mundo é moldado. Um de seus mais célebres trabalhos, As técnicas do corpo (1980 (1936)), abordava os modos como o corpo é a matéria-prima que a cultura molda e inscreve de modo a criar diferenças sociais. Isto é, o corpo humano nunca pode ser encontrado num qualquer suposto “estado natural”.
Louis Dumont, seguindo as principais ideais de Mauss, debate questões como hierarquia, igualdade e individualismo a partir de um estudo sobre castas no contexto indiano (DUMONT, 1966). O autor aponta que a hierarquia é o princípio fundamental da sociedade indiana e nós, os modernos, nos apropriamos de seu contrário: o princípio igualitário.
Dumont afirma que a maior dificuldade em compreender sociedades que divergem daquela na qual estamos inseridos – baseada no pilar da ideologia moderna tida como universal – é justamente a não capacidade de nos desfazermos de valores como a igualdade para apreender intelectualmente outros valores. Ele explica que “o princípio igualitário e o princípio hierárquico são realidades primeiras, e das mais cerceadoras, da vida política ou da vida social em geral.” (DUMONT, 1966 pg 51). Assim, a ideologia – conjunto mais ou menos social de idéias e valores – não é secundária na vida social.
Para Dumont (1966), a função da sociologia é preencher a lacuna da sociedade individualista que entende a sociedade como um resíduo não-humano em contraposição ao indivíduo, que abriga a realidade psicológica e moral. Assim, ela propõe o homem social, um ponto de emergência autônomo, de uma humanidade coletiva particular; uma sociedade.
O autor ainda pontua que a consciência individual origina-se do que ele caracteriza como adestramento social, ou seja, o homem age de acordo com aquilo que pensa, e o agenciamento dos pensamentos a seu modo e a construção de categorias novas são feitos a partir de categorias dadas socialmente.
Outro autor de extrema relevância para esta “antropologia dos corpos” é Thomas Csordas. Em “Corpo, Significado, Cura”, Csordas (2008) investiga os mecanismos simbólicos ativados quando em rituais de cura de católicos norteamericanos. A investigação feita por Csordas objetiva analisar os sentidos dos indivíduos de uma forma que considere não só aquilo que é vivido e transformado, mas também o que é culturalmente posto. Trata-se, portanto, de um paradigma – que Csordas chamou de paradigma da corporeidade – que observa o mundo de uma maneira não desprovida de sentido e capaz de considerar aquilo que é sentido e refletido.
Csordas propõe, portanto, uma análise que não se finde nos objetos culturalmente construídos, mas nas percepções humanas. A afirmação de que “o corpo é um ponto de partida produtivo para analisar a cultura e o sujeito” (CSORDAS, 2008 pg 145) mostra que a abordagem proposta, que foca na percepção (pré-objetivo) e na prática (habitus) a partir do corpo, torna obsoleta a distinção tradicional entre sujeito e objeto.
Avançando em nosso trabalho para os estudos que se propõe a lançar um olhar sobre o uso de drogas e a corporeidade, temos a proposição de Eduardo Viana Vargas (2003), que corrobora as pesquisas anteriores e aponta para a necessidade de uma abordagem que não se restrinja ao naturalismo ou ao culturalismo já que optar por uma ou outra resulta em interpretações errôneas. O autor afirma que a problemática do consumo de drogas
Não pode ser adequadamente equacionada, de um lado, sem que se considerem os processos de encorporação e de subjetivação articulados a tais consumos e, de outro, ao apreciar tais processos, sem que se questione a partilha e se evite considerar apenas um de seus lados, sem levar em conta o outro ou, mais precisamente, sem que se considere o que se passa entre eles, nas zonas intersticiais, isto é, lá onde o corpo é subjetivado e o sujeito é encorporado, onde o material se espiritualiza e o espírito se materializa, vale dizer, onde as distinções entre corpos e sujeitos humanos ou entre material e simbólico perdem toda a nitidez (VARGAS, 2003 pg 539).
Taniele Rui (2014), ao investigar a cracolândia e todos os fluxos e tramas imbricados na região, concluiu que a abjeção aos corpos de usuários de crack se dá não pela falta de limpeza ou pela possibilidade de transmissão de doenças, mas porque perturbam ficções de identidade, por não respeitarem fronteiras, regras, ou seja, por serem ambíguos. Tais corpos, a autora afirma, estão às margens – margem esta produzida pelo próprio Estado, que a combate e alimenta-a – expressando perigo e poder.
Buscando ainda questionar as categorias analíticas usadas comumente para estudar o uso de drogas, é imprescindível atentar para a forma como a substância é compreendida pela sociedade. Dando sequência às reflexões no âmbito do tratamento dicotômico e nada flexível dos corpos na antropologia, os escritos de Tim Ingold (2012) sobre a oposição objeto/coisa certamente nos ajudam a refletir sobre o papel atribuído a droga.
Ingold (2012), em suas investigações sobre cultura material e utilizando conceitos da antropologia ecológica, busca uma ontologia que priorize os processos de formação ao invés do produto final e os fluxos e transformações em detrimento do estado da matéria. O autor, para tanto, diferencia objeto e coisa, sendo o primeiro colocado diante de nós como um fato consumado; algo congelado. Por outro lado, a coisa refere-se a um “acontecer”, algo em constante mutação; “um lugar onde diversos aconteceres se entrelaçam”. Nós participamos, enquanto sociedade, da coisificação da coisa no mundo. Entendendo cada pessoa – neste caso, participante – como seguindo um modo de vida particular, tecendo um fio, pode-se conceituar a coisa como um “parlamento de fios”, como proposto em trabalhos anteriores por Ingold (2007). Assim, não se trata de uma entidade que se fecha para o exterior, mas de coisas que vazam (2012). A coisa é, portanto, algo não-estático; em construção.
De maneira análoga, podemos olhar para a questão das drogas: a droga, do ponto de vista social, poderia ser classificada como um objeto pois é entendida como algo decisivo, concreto; é detonadora de conflitos, capaz de usurpar toda e qualquer humanidade do indivíduo. No caso do crack, esta noção se acentua: usuários são vistos como zumbis e há uma noção de que basta um primeiro uso para que toda sua racionalidade fique suspensa (RUI, 2014). A figura do noia (“aqueles que, devido a diversas circunstâncias sociais e individuais desenvolveram com a substância uma relação extrema e radical, produto e produtora de uma corporeidade em que ganha destaque a abjeção” (RUI, 2014 pg 21) é capaz de radicalizar a alteridade, fundando um tipo social baseado na exclusão.
O que é priorizado, neste caso, é o produto final – como buscou superar Ingold (2012) -; o dependente de drogas. A figura do indivíduo que desenvolve o uso problemático de drogas é reduzida a sua imagem, representada por corpos abjetos que invocam percepções simbólicas e morais que suscitam o desconforto (RUI, 2014). O indivíduo tem sua humanidade retirada através de uma série de eventos de uso contínuo da substância, o que elimina toda a complexidade que o uso de drogas evoca.
Esta visão incorre, novamente, em dualismos que a antropologia que se propõe ao estudo do uso de drogas a partir de noções de corporeidade tenta evitar. Invertendo esta objetificação da droga, temos sua coisificação: há que se considerar toda a complexidade e trama na qual este uso se insere; as vulnerabilidades sociais que cercam usuários e são anteriores à droga, a auto-regulação que estes fazem sobre seus corpos, as tensões e os campos de disputas que ocorrem nos locais públicos onde o uso é feito (SOUZA, 2016; RUI, 2014; FROMM, 2017 ). Como bem nos aponta Taniele Rui (2014), o uso de drogas, além de seu efeito público e político, está ligado intimamente à rejeição ou à comiseração diante de uma corporalidade específica que nos faz refletir acerca dos limites da experiência humana.
Assim, quando propõe-se a coisificação da droga, o intuito é abarcar a substância em toda sua complexidade, entendendo-a como algo mutável de acordo com o contexto e a biografia na qual está inserida; atentando para os corpos nos quais ela transcorre. Neste caso, os fluxos e as transformações são considerados, como propõe Ingold (2012), para que a mera demonização de substâncias seja evitada e a análise se complexifique.
Neste sentido, partimos então para a última seção deste trabalho, que é uma extensão de trabalhos anteriores (NAPOLIÃO, 2016). Nela, lançaremos um breve olhar sobre a Casa Viva, uma política pública do município do Rio de Janeiro norteada pelo paradigma da redução de danos que acolhe jovens em situação social vulnerável e que enfrentam problemas com drogas. A redução de danos é um paradigma baseado na compreensão de que grande número de pessoas segue usando drogas apesar dos esforços empreendidos para prevenir o início ou o uso contínuo do consumo. Parte-se do princípio de que há quem não consiga ou queira parar o uso, e garantir o acesso a um tratamento adequado para estes casos é fundamental para aqueles que desenvolvem o uso problemático de drogas (IHRA, 2010).
O objetivo é olhar para os resultados da pesquisa em questão sob a perspectiva não-dual presente no paradigma da corporeidade, de maneira a mobilizar os conceitos anteriormente apresentados.